Carta de Ribeirão Preto
Pela Reforma Agrária, em defesa do meio ambiente
Os membros do Ministério Público Estadual e Federal, reunidos por ocasião do Seminário "Meio Ambiente e Reforma Agrária", realizado no dia 13 de dezembro de 1999, na cidade de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, discutiram e aprovaram as seguintes conclusões:
Função social da propriedade
1. O regime jurídico da propriedade tem seu fundamento na Constituição da República. Com a instituição constitucional da função social da propriedade, ocorreu a constitucionalização e publicização do regime jurídico da propriedade.
2. A propriedade é disciplinada pelo Direito Constitucional. Cabe ao Direito Civil tão-somente regular as relações civis pertinentes à propriedade.
3. A função social define o conteúdo do direito de propriedade. A função social não é uma limitação do uso da propriedade, ela é elemento essencial, interno, que compõe a definição da propriedade. A função social é elemento do conteúdo do direito de propriedade.
4. Só se legitima o ordenamento jurídico brasileiro a propriedade que cumpre a função social. A propriedade que descumpre a função social não pode ser objeto de proteção jurídica. Não há fundamento jurídico a atribuir direito de propriedade ao titular da propriedade que não está a cumprir sua função social.
5. Nos termos do art. 186, incs. I a IV, da Constituição da República, a função social da propriedade rural é constituída por um elemento econômico (aproveitamento racional e adequado), um elemento ambiental (utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente) e um elemento social (observância das normas que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores).
6. Somente cumpre a função social a propriedade rural que atenda simultaneamente aos elementos econômicos, ambiental e social.
7. A degradação ambiental da propriedade rural, seja ela provocada pela utilização inadequada dos recursos naturais ou pela não preservação do meio ambiente, implica aproveitamento irracional e inadequado da terra. Há, portanto, vinculação entre os elementos econômico e ambiental da função social, sendo impossível dissociá-los.
8. Não pode ser considerada produtiva, do ponto-de-vista jurídico-constitucional, a atividade rural que necessite utilizar inadequadamente os recursos naturais e degradar o meio ambiente para alcançar o grau de eficiência na exploração da terra.
9. A inobservância das disposições que regulam as relações de trabalho e a exploração que desfavoreça o bem-estar dos trabalhadores implicam aproveitamento irracional e inadequado da propriedade rural. Há, portanto, vinculação entre os elementos econômico e social da função social, sendo impossível dissociá-los.
10. Não pode ser considerada produtiva, do ponto-de-vista jurídico-constitucional, a atividade rural que necessite desrespeitar as disposições que regulam as relações de trabalho e necessite prejudicar o bem-estar dos trabalhadores para alcançar o grau de eficiência na exploração da terra.
11. Ainda que a produtividade, do ponto-de-vista estritamente econômico, esteja presente, a propriedade rural poderá ser desapropriada para fins de Reforma Agrária se descumprido um dos demais requisitos caracterizadores da função social (elemento ambiental ou social).
12. O padrão produtivo da agricultura moderna – baseado na grande propriedade, na monocultura, na agroquímica e na redução de mão-de-obra –, hegemônico no Brasil, é antidemocrático e inconstitucional. A propriedade rural que produz observando esse modelo descumpre a função social e é passível de desapropriação por interesse social, para fins de Reforma Agrária.
13. A promoção da agricultura sustentável – ecologicamente equilibrada, economicamente viável, socialmente justa e culturalmente apropriada – passa necessariamente pela reorganização da propriedade rural, o que implica a efetivação da política de Reforma Agrária no país.
14. A função social da propriedade rural exige a preservação do meio ambiente. Logo, não atende à função social a propriedade que não possuir suas áreas de preservação permanente e de reserva legal devidamente florestadas.
15. Pela nova ordem constitucional, as áreas de preservação permanente e de reserva legal são consideradas espaços territoriais ambientalmente protegidos. Sendo assim, não existe direito adquirido à exploração agrícola das áreas de preservação permanente e de reserva legal; tampouco há falar em indenização ao proprietário obrigado a cessar a exploração econômica nessas áreas.
16. O art. 12, parágrafo 1º, inc. II, letra "b", da Lei nº 8629/93 (Lei da Reforma Agrária), ao pretender obrigar a indenização pela capacidade potencial da terra, é inconstitucional. Isso porque não é possível indenizar a não realização de uma obrigação jurídica.
Função social da propriedade rural e a atuação do Ministério Público
17. Cumpre ao Ministério Público, através das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente, combater as práticas rurais antiambientais que caracterizam o padrão de produção agrícola hegemônico no Brasil, bem como promover a agricultura sustentável, utilizando todos os instrumentos jurídico-processuais que estão a sua disposição, em especial o inquérito civil, o compromisso de ajustamento de conduta e ação civil pública.
18. Diante da omissão do governo federal na efetiva implementação da Reforma Agrária no país, mister a intervenção do Ministério Público, que, em atuação conjunta das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente e da Cidadania e da Procuradoria da República, deve recomendar ao Incra a desapropriação das propriedades onde ocorrem as práticas rurais antiambientais e, se não atendida a recomendação, deve propor ação civil pública que tenha por objeto a obrigação de fazer a desapropriação e a obrigação de fazer o assentamento de trabalhadores sem terra e sem emprego nessas áreas.
19. O Ministério Público haverá de agir como intermediador qualificado no conflito coletivo pela posse da terra, agindo junto ao órgão que pode e deve promover vistorias e desapropriações, para que cumpra com sua tarefa, posto que a Constituição não se compraz com a existência, de um lado, de terras descumpridas da função social e, de outro, parcelas da população sem direito ao exercício da cidadania. Enfim, o Ministério Público deve atuar nos conflitos agrários com o propósito de viabilizar o acesso dos trabalhadores à posse da terra, em cumprimento do art. 5º, caput e inciso XXII, que garante, isonomicamente, o direito de propriedade para todos.
20. O Ministério Público deve utilizar-se dos procedimentos administrativos e das ações judiciais, quer de natureza civil, quer de natureza penal, para, também, exercer as funções gizadas no art. 129, inc. II, da Constituição da República. O Ministério Público não pode descuar de todas as questões que estão imbricadas nas demandas que têm como centro o conflito pela posse da terra. Haverá de verificar, por exemplo, se a área em conflito tem correto título de domínio, se a posse é justa, se a propriedade é produtiva, se cumpre a função social, se respeita o meio ambiente. Haverá de verificar se a população em busca da terra tem atendidos os direitos constitucionais à educação, à saúde, à alimentação, à dignidade, etc.
21. Os Ministérios Públicos Federal e dos Estados devem constituir grupos especiais de trabalho para, em atuação conjunta, levantar dados, trocar informações e intervir administrativa e judicialmente na efetivação da política de Reforma Agrária no país.
Função social da propriedade rural e os processos que envolvem litígios coletivos pela posse da terra rural
22. A posse que merece proteção jurídica é aquela que, nos termos do Código Civil, seja justa e de boa fé, e aquela que, em razão da Constituição da República e das leis que regulamentam a matéria, recaia sobre terras que cumpram a função social, em todos os seus elementos (econômico, ambiental e social), escapando da possibilidade de servir à Reforma Agrária.
23. É ilegal a utilização dos institutos da legítima defesa da posse e do desforço imediato quando se tratar de ações de preservação de terras que não cumpram com sua destinação constitucional.
24. O ônus de provar que a posse carente de proteção judicial recai sobre terra que cumpra com sua função social é do autor.
25. A indefinição dominial ou pendência relacionada à indenização por benfeitorias não desobriga o postulante da proteção possessória de comprovar os requisitos constitucionais para a obtenção da tutela pretendida.
26. A petição inicial da ação possessória que não identifica corretamente a parte que deve figurar no pólo passivo do processo é inepta, nos termos do art. 282, inc. II, do Código de Processo Civil. Há possibilidade de embargos de terceiros possuidores quando não regularmente chamados a compor a relação jurídica processual.
27. A execução forçada das medidas deferidas no âmbito dos processos que envolvem litígios coletivos pela posse da terra deve ser realizada da forma menos gravosa ou humilhante para o "devedor-ocupador", nos termos do art. 620 do Código de Processo Civil.
28. Os tribunais não podem furtar-se a obedecer ao princípio do juiz natural, respeitando o sistema de competência por distribuição, quando da apreciação das medidas liminares em geral. Deve ser repudiada e questionada, pois inconstitucional, a concentração de poderes para a concessão ou não dessas medidas na pessoa de um único juiz ou desembargador.
29. O Ministério Público, nas ações que envolvem litígios coletivos pela posse da terra rural, tem a qualidade de interveniente em razão da natureza da lide, reveladora do interesse público primário da República Federativa do Brasil de incrementar, em conformidade com a Constituição e com as leis, a Reforma Agrária.
Conclusões finais
30. A luta pela terra, por parte dos trabalhadores excluídos do direito constitucional de propriedade, configura um espaço instituinte de produção desse direito e deve ser entendida como autêntica fonte material do direito, com a mesma importância das fontes formais.
31. A luta pelo direito à terra e ao trabalho na terra, enquanto direito básico do homem, deve ser travada tanto no espaço instituinte, quanto na esfera do instituído, uma vez que a produção do direito, no plano concreto e efetivo, é realizada no âmbito do processo histórico animado pelas lutas sociais em torno da: a) legalização; b) efetivação; c) aprofundamento; d) manutenção dos direitos fundamentais da pessoa humana.
32. A luta pelo direito à terra e ao trabalho na terra trava-se no espaço do não legalizado (instituinte) e no âmbito da ordem jurídica vigente (instituído); esses dois espaços (instituinte e instituído) representam dois momentos da produção do direito e a atuação do Ministério Público deve dar-se tanto num quanto noutro, sempre na perspectiva de um autêntico custos juris, para além, portanto, das simples funções de fiscal da lei, na tradição liberal do custos legis, esta última mais adequada aos conflitos interindividuais, que não exibem grande carga sociopolítica como é o caso dos conflitos em torno da terra.
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